sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Ciumentando



Minha menina anda crescida. Já come sozinha, passa xampu sozinha e  reclama sozinha também. Certo dia estava ajudando a avó a dobrar paninho quando ouviu o telefone tocando. A avó atendeu, e entre papos e risadas soltou o nome da amiga que estava do outro lado da linha. Cecília. Minha menina, sempre atenta, se voltou para a avó e com a voz toda braba reclamou: NÃO! Cecília é MINHA amiga!

A avó explicou, “Não, querida. É outra amiguinha. Essa Cecília é de vovó”. Não houve acordo. Chateada e possessiva, saiu do quarto e passou resmungando pela cozinha. Atravessou o quintal e chegou à nossa casa, onde encontrou o pai. Encarou-o e disse com firmeza, “Cecília é MINHA amiga!”.


O pai, sem entender, apenas concordou e assistiu enquanto ela apanhou o telefone e demandou: “Liga aqui pra Cecília”. 

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Sobre delicadeza



Caminhando para casa, parei em uma praça e vi um casal de jovens sentados em um banco. Em dado momento, pararam de se beijar graças a um telefone tocando. Era do jovem, uma outra menina. Fiquei sabendo graças à saudação calorosa que ele estava berrando aos quatro ventos. E vi também a expressão rápida, quase imperceptível, de dor física que a jovenzinha que estava com ele soltou involuntariamente. Em uma fração de segundo ela se recuperou e ninguém no mundo poderia desconfiar que estava sentindo algo. Sua expressão era de normalidade total, um ar de feliz indiferença.  Levantou-se, comprou uma água e voltou para o banquinho. Ele havia acabado a conversa. Com um sorriso no rosto, ela perguntou quem tinha sido. Ele respondeu, ela sorriu, ele abriu o celular para checar se havia recebido mensagem. Vi ela se controlar para não olhar e forçar a cabeça para o lado oposto com uma naturalidade incrível, enquanto tomava um gole de água. Ele guardou o celular e voltaram aos amores. Logo tocou novamente, era outra mensagem. Não fiquei para ver o desenrolar, mas imagino que ela tenha continuado com sua segura naturalidade. Por chance, ela acabou na mesma parada e subiu no mesmo ônibus que eu. Estava com um olhar oco, como quem está arrancando farpas de dentro da pele e sofrendo com cada puxada de ar. Não estava chorando, mas estava visivelmente triste. Passei a viagem inteira olhando para ela.

Me vi nessa menina. Hoje em dia, olho e vejo todos nós nela. Os sofrimentos calados, a leveza forçada, todo um mecanismo de convencer ao público e a nós mesmos que não somos afetados por mediocridades.

Ao primeiro olhar, as pessoas parecem normais e completas, sem traumas e sem dores, esbanjando confiança e felicidade. Uma multidão de pessoas bem resolvidas, com relacionamentos saudáveis, milhares de amigos, zero preocupações e absolutamente nenhuma dívida. Um mundo de pessoas fortes, que não levam desaforo para canto nenhum. Pelo contrário, retrucam e saem de confrontos totalmente desabaladas.   

Essa persona é fácil de encarnar. Basta colocar um sorriso no rosto (irônico ou não), menosprezar tudo e fingir que nada pode magoar você. Você é blasé, você não se afeta, tudo bate no seu couro e faz cócegas. E a grande maioria de nós utiliza desses recursos para viver, supostamente, com o mínimo de cicatrizes emocionais possível. Se resguardando da vergonha, da exposição, desse sentimento de nudez da alma.

Essa persona pode parecer que facilita a vida. Nos exime da vulnerabilidade do ser. De mostrar nossos conflitos, inseguranças, usar o coração na manga e deixar os sentimentos transparecerem. Mais fácil do que se deixar sentir em público.

Mas não deveríamos querer fugir da nossa vulnerabilidade. Nossa humanidade é imperfeita, precisamos dessa falta de lapidação. Chorar, sentir raiva, sentir amor, sentir alegria com besteirinhas, esses e mais centenas de sentimentos que precisam ser repreendidos dia após dia são, na verdade, o que dá o sabor à experiência de viver. Ser emocionalmente desapegado não é benéfico para si e para o mundo que olha para você. Talvez pensar quinze vezes antes de falar o que  sente não seja o melhor conselho. Talvez falar o que está sentindo e esperar a reação sincera – positiva ou negativa – seja a 
melhor opção. Não é a mais fácil, mas é a melhor. E nem todos vão aceitar. Pessoas se assustam, não sabem como reagir e aproveitam a oportunidade para se sentirem superiores. Como se um sentimento fosse passível de tornar uma pessoa ridícula. Nenhum ser humano é ridículo. Ou melhor, nós todos somos ridículos. Não precisamos sentir vergonha disso.


Talvez a fortaleza emocional dos filhos que queremos criar esteja incutida nessa liberdade para sentir, expressar e se expor sem medo de sermos vistos como fracos. Crianças conectadas com seus sentimentos se tornam adolescentes mais confiantes e adultos mais corajosos. Pessoas mais generosas e suaves para com o próximo. Existe uma força que deve ser explorada dentro da fragilidade de cada um de nós.